Felicidade e sobriedade sóbria

Resgatar a felicidade como processo pessoal e comunitário

(extraído do artigo “Felicidade e sobriedade feliz – uma contribuição para novos paradigmas”, publicado no livro “Novos paradigmas para outro mundo possível”

AFONSO MURAD

Do ponto de vista individual, um dos segredos do “viver bem” consiste em manter a capacidade de surpreender-se com “o pequeno”, desfrutar o cotidiano que já temos e lutar contra os mecanismos de “acostumar-se” com os aspectos belos que já recebemos e cultivamos. Uma transmutação: ir além da felicidade como ter, para a felicidade como ser e atuar.

Desfrutar de estar vivo. Desfrutar do frio no inverno e do calor no verão, do sol nos dias ensolarados e da chuva no tempo chuvoso. (…) Desfrutar de poder caminhar, ler, beber água, amar um corpo que nos ama. Desfrutar da ausência de dores, da profunda sensação de mera existência (Riechmann, 2015, p.19)

Do ponto de vista comunitário, uma questão vital para quem abraça novos paradigmas consiste em empenhar-se na luta para que os mais pobres (classes sociais, grupos étnico-culturais, povos e nações) tenham acesso aos bens comuns. Esta é uma condição irrenunciável para a felicidade da humanidade. Convém recordar que alguns bens comuns (como moradia, água e saneamento, energia, educação formal, vestimenta, comunicação, alimentos saudáveis, posse da terra para cultivo, segurança, lazer..) se transformam também em bens de consumo na sociedade capitalista. E alguns deles, quando são privatizados e mercantilizados (como o acesso à água), reduzem a possibilidade de vida digna dos mais pobres.

O acesso aos bens de consumo pode aumentar a sensação de felicidade, até certo ponto, pois há um efeito umbral. O questionário mundial de valores (1999-2000) em sessenta e cinco países constatou que o aumento de remuneração média de até 13.000 dólares anuais cresce na mesma proporção que a sensação de felicidade. Depois desse umbral, a curva se inverte. A correlação entre remuneração e níveis de satisfação vital desaparece a partir dos 18.000 dólares. Como as necessidades básicas estão cobertas,outros quesitos se tornam os decisivos. Os estudiosos suecos Backstrand e Ingelstam (2006) chegaram à conclusão que a relação entre consumo dos bens e a satisfação dele derivada não é linear. E sim uma curva do tipo U invertida.Depois de alcançar certo umbral de saturação, o incremento do consumo se torna contraproducente (Riechmann, 2011, p.26-27).

O crescimento ilimitado do PIB, por si só, não traz felicidade para a população. Nos países superdesenvolvidos, “a falta de tempo, o incremento das doenças da riqueza (obesidade, patologias causadas pelo stress, depressão), a pobreza dos vínculos sociais, a baixa qualidade da vida política e a devastação da natureza” reduzem as possibilidades de “viver bem”. Então, uma vida feliz inclui três tipos de riqueza: em bens, em tempo e relacional (Idem, p.28).

Reconhecemos que a busca de felicidade, enquanto uma realidade coletiva, consiste em efetivamente oferecer as condições para a satisfação básica de todos os seres humanos, de forma sustentável. Ou seja, mantendo a teia da vida no planeta. Sem esse requisito, todo o discurso posterior pode ser uma armadilha do mercado,que invisibiliza os pobres e marginalizados. E alimenta o estereótipo do “rico autossuficiente, feliz e solitário”.

Para ser feliz é importante investir nos vínculos sociais, em vários âmbitos: no amor,no trabalho, na família, no círculo de amigos, na militância política, na assembleia de cidadãos. Uma chave essencial da felicidade consiste nos vínculos sociais satisfatórios. No grego, se diz “philia”, um conceito de amizade com uma dimensão política evidente. Aristóteles, na Ética a Nicômaco, afirma: “A amizade é o mais necessário da vida. Sem amigos ninguém quereria viver, ainda que possuísse todos os demais bens” (citado em Riechmann, 2011, p.29).  Conquistada a satisfação das necessidades básicas, a chave da felicidade humana está na qualidade do vínculo social.

Do ponto de vista comunitário e estrutural, a busca da felicidade comporta necessariamente a consciência e aluta para reduzir as desigualdades sociais e cuidar da teia da vida no nosso planeta. Em outras obras, Riechmann desenvolve o conceito de “autocontenção”, a começar das sociedades e das classes sociais enriquecidas. Para elas, faz-se necessário diminuir o consumo, adotar “um modelo de austeridade não repressiva”, colocando-se em pauta a redistribuição da renda e a questão da propriedade. É claro que tal proposta provocará resistência, conflito e perseguição aos seus defensores.

O capital quer nos fazer crer que somos o que vendemos ou compramos. Mas, em profundidade, somos o que oferecemos, recebemos e partilhamos. Somente a construção de laços ricos e sólidos com nossos congêneres humanos e os de mais seres do planeta nos conduzirá à plenitude possível do humano.