Niilismo

(extraído de Franco VOLPI. O Niilismo. São Paulo: Loyola, 1999)

“É de incerteza e precariedade a situação do homem contemporâneo. Lembra a de um andarilho que há muito caminha numa área congelada e, de repente, com o degelo, se vê surpreendido pelo chão que começa a se partir em mil pedaços. Rompidos a estabilidade dos valores e os conceitos tradicionais, torna-se difícil prosseguir o caminho.

A reflexão filosófica procurou diagnosticar essa situação, pela análise dos males que afligem o homem de hoje e dos perigos que o ameaçam, chegando a identificar como causa essencial o‘niilismo’. E que é o niilismo?

(…)

O niilismo constitui (…) uma situação de desnorteamento provocado pela falta de referências tradicionais, ou seja, dos valores e ideais que representavam uma resposta aos porquês e, como tais, iluminavam a caminhada humana. (…)”

“Etimologicamente, o niilismo –do latim nihil (nada) – é o pensamento obcecado pelo nada.”

Mas “Não há como ver no niilismo apenas uma obscura tentativa de vanguardas intelectuais, pois ele agora impregna o próprio ar que se respira.”

“Diminui e desfaz-se a tensão entre ser e dever-ser, que, nas formas da secularização moderna, fôra a ideia predominante do agir humano na história (…) Desvaneceu-se a crença num final feliz da história (…) O niilismo da cultura contemporânea não é só crise dos valores e falta de transcendências compartilhadas: é também a constatação de que o agir humano não vibra mais entre os pólos opostos da tradição e da revolução, mas se comprime na perspectiva estreita do ‘aqui e agora’. Nem história nem porvir, somente o dado pontual do instante, esse o horizonte de ação do homem contemporâneo. (…) queremos a realização mais livre e mais completa do indivíduo, e a queremos já. Queremos a maior felicidade possível, e a queremos agora. Queremos a solução de todos os problemas sociais, mas não num dia por vir, e sim hoje ou, o mais tardar, amanhã, no máximo depois de amanhã.(…) a inteligência mostra-se hoje incapaz de engendrar experiências simbólicas suscetíveis de consenso e corre o risco de se reduzir a uma inteligência cínica, que, para eliminar o desconforto da perda de pontos de referência, se compraz e se inebria no aqui e no agora, no presente em sua mais puntiforme e efêmera atualidade, no sentido em sua mais imediata consumação. E isso (…) é niilismo.”

“Será possível (…) transformara experiência [do niilismo] em lição para nós, num poderoso convite à lucidez de pensamento e ao questionamento radical, num tempo em que os altares abandonados passam a se povoar de demônios?”

O niilismo nos ensina “a manter uma razoável prudência de pensamento(…) que nos torna capazes de navegar por entre os escolhos do mar da precariedade, na viagem do vir-a-ser, na transição de uma cultura a outra, na negociação entre os vários grupos de interesse. Depois do declínio das transcendências e da entrada no mundo moderno da técnica e das massas, depois da corrupção do reino da legitimidade e da passagem para o reino das convenções, o único procedimento recomendável é trabalhar com as convenções sem apostar demasiado nelas, a única atitude não-ingênua é renunciar à sobredeterminação ideológica e moral de nosso comportamento. (…) De fato,ainda não sabemos quando poderemos afirmar de nós mesmos o que Nietzsche ousava pensar de si próprio, ao se apresentar como ‘o primeiro niilista perfeito da Europa, que, porém, já viveu em si mesmo, profundamente, o próprio niilismo – eque o tem atrás de si, debaixo de si, fora de si’.”

[Tal seria o caminho para a lúcida autossuperação do niilismo]