Mário Quintana, em seu Caderno H, diz que “a teologia é o caminho mais longo para se chegar a Deus”. A ironia do poeta nos instiga a pensar com ele e, quem sabe, também com a teologia. Seja pelos caminhos longos do pensamento ou pela seta rápida como raio do poeta, procuramos por Deus num mundo que parece insistentemente cada vez mais escondê-lo. A face do horror, da mentira, do descaso com a vida, nos assalta a cada dia em nosso país ora marcado pela dor. Os mortos que se acumulam – e aqui falo da Covid, mas também da violência que não desaparece do nosso horizonte social – nos põem em estado de alerta, de tristeza, ou de raiva. A raiva nos direciona contra aqueles que, tendo poder para combater a morte cotidiana, não o fazem, ou mesmo a favorecem, o que nos traz a recorrente impressão de que nada podemos contra eles. E então o poeta nos ajuda com o seu conhecido “Poeminho do contra”: Todos esses que aí estão/ Atravancando o meu caminho,/ Eles passarão… / Eu passarinho! Os versos do Quintana parecem acender em nós um fogo interno capaz de resistir. Quando eles passarem, eles que atravancam meu caminho, nosso caminho, o caminho do amor e da vida, que é (deve ser!) o caminho mais curto para se chegar a Deus, eu ainda estarei voando na liberdade da vida que passarinha. Eu e você, e nós todos que seguimos resistindo sem deixar de ver o horror que passará. Nós, e entre nós o Quintana, que, na leveza do passarinho, voamos enquanto esperamos que tantos outros também voem na construção de um mundo outro, que seja espaço de vida e liberdade. (…) É então Deus, alcançado por meio do longo caminho da teologia ou pela via rápida da sensibilidade que se sabe ferida, que há de permitir, cada vez a um número maior de nós – até que sejamos todos nós –, que sigamos passarinhos.
Marília Murta de Almeida. “Passarinhos”. In: https://faculdadejesuita.edu.br/fajeonline/palavra-presenca/passarinhos/
Meditação:
Como encontrar Deus diante das crises deste mundo? Como resistir ao desânimo e conservar nossa liberdade interior e exterior? O Passo a Pensar de hoje quer nos ajudar a refletir sobre isso, a partir da crônica “Passarinhos”, da professora de filosofia Marília Murta de Almeida. Escutemos o que ela nos diz:
Marília Murta fala de duas vias – uma longa e outra curta – para ter acesso a Deus neste mundo como ele é: a reflexão da teologia e a intuição simbólica da poesia. Este duplo modo de acesso é igualmente verdadeiro para a compreensão do mundo e de nós mesmos. A qual dessas duas vias você é mais sensível?
A professora aponta para a raiva que pode emergir diante do descaso pela vida, o horror diante da violência, da mentira e da morte. A palavra poética, sem negar a dor diante daqueles que “atravancam o caminho”, ousa alçar o olhar para mais longe e apontar dois futuros possíveis: o desaparecimento ou a liberdade! Você ousa sonhar com e como o poeta?
Marília Murta enxerga na leveza da metáfora do passarinho um chamado à resistência para quem quer voar e construir um mundo onde a vida e a liberdade sejam possíveis e a esperança de que a liberdade do amor é o desejo de Deus para todos. O que esta metáfora do passarinho lhe sugere sobre sua vida, suas ações e sua fé?
O Passo a Pensar de hoje vai chegando ao fim. Você concorda com a reflexão proposta? Que pontos merecem um maior aprofundamento?
A Faculdade Jesuíta deseja que a poesia nos ajude a sonhar, a resistir, a crer no mundo que virá
Produção e Locução: Lucimara Trevizan e Francys Silvestrini Adão SJ
Música: Wefko (vertente, em língua mapuche). © 2016, Cristóbal Fones, SJ