Menos curiosidade, mais simpatia

Na maioria das vezes, o interesse que se dirige ao outro não é a expressão da simpatia, mas antes o fruto da curiosidade. A curiosidade só é gulosa de detalhes biográficos, de anedotas mais ou menos picantes, de fofocas, de lembranças raras e confidências. Não é o amor, são o detetive e o inspetor de polícia que têm de se haver com os suspeitos e acumulam informações ao seu respeito. De fato, a simpatia começa onde não há mais espaço para a curiosidade. Se você tem curiosidade sobre mim, é porque você não tem simpatia por mim. Se você procura saber algo sobre mim, extrair algum detalhe escabroso, é porque não quer me conhecer. Sim, a curiosidade se opõe à simpatia como o amador ao amante, como a seleção à eleição: o amador seleciona, ordena e detalha os indivíduos à maneira de um colecionador que classifica as amostras numa série abstrata ou num gênero impessoal. (…) O amor não seleciona caracteres, adota, sim, a pessoa inteira por uma eleição maciça e indivisa. O amor nada deseja saber sobre o que ama; o que ama é o centro da pessoa viva, porque essa pessoa é para ele fim em si, ipseidade incomparável, mistério único no mundo. Imagino um amante que teria vivido toda a sua vida ao lado de uma mulher, que a teria amado apaixonadamente e nunca teria lhe perguntado nada e morreria sem nada saber sobre ela. Talvez porque soubesse desde o começo tudo o que havia para se saber.

Vladimir Jankélévitch. Em algum lugar do inacabado.

Meditação:

Em 1978, o filósofo francês Vladimir Jankélévitch participa de uma longa entrevista, conduzida por sua ex-aluna Béatrice Berlowitz, com o objetivo de oferecer, em forma de livro, um panorama acessível de seu pensamento. O livro, intitulado Em algum lugar do inacabado, a ser publicado em breve no Brasil pela editora Perspectiva, apresenta temas essenciais à filosofia jankélévitchiana, como o tempo, o amor, a morte e a música. Para o Passo a Pensar de hoje, selecionamos um trecho do primeiro capítulo da obra, no qual o autor estabelece uma distinção original e oportuna.

Como essas palavras ressoam em nossa caminhada? Percebemos em nós cicatrizes vindas de aproximações que, de início, julgamos motivadas pelo amor, mas que, mais tarde, revelaram-se frutos da curiosidade? E, quando nos voltamos para o outro, temos dado muita atenção a seus “detalhes biográficos”? Conseguimos observar que o foco nos aspectos mais superficiais do próximo tende a impedir uma relação mais plena e madura?

Escutemos novamente a reflexão de Jankélévitch, tentando aprofundar esses dois tipos contrastantes de relação.

Nessas considerações sobre a curiosidade e o amor, encontram-se implícitos dois modos de conhecer detectados por Jankélévitch em continuidade com a tradição filosófica. Em certos casos, podemos conhecer aspectos circunstanciais de determinadas realidades, como a procedência, o peso, a medida, a temperatura, a cor e os traços, enquanto, em outros, podemos conhecer sua essência. Muitas vezes, tais conhecimentos são inconciliáveis. O curioso, por exemplo, não consegue chegar ao outro em seu núcleo, pois o reduz a características periféricas. Ao contrário, o amante acolhe de tal modo o que há de mais intrínseco na pessoa amada a ponto de pouco lhe importar de que família ela veio ou que pecados ela cometeu. Identificamos, em nossos convívios, alguma relação genuína de amor, em que não nos atentamos às curiosidades por já saborearmos e respeitarmos um tesouro maior? Caso positivo, valorizamos e agradecemos o suficiente tal relação privilegiada, que resgata, num cenário utilitarista, a face nobre de nossa humanidade?

Com essas perguntas, chegamos ao fim de mais um Passo a Pensar. A filosofia em diálogo com a vida, cultivada por Jankélévitch e sintetizada no livro Em algum lugar do inacabado tem muito a nos provocar.

Música: Pavane pour une infante défunte, Maurice Ravel

Locução: Clovis Salgado Gontijo e Marcia Zuzarte

Produção: Clovis Salgado Gontijo e Francys Silvestrini Adão

Realização: Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia