Geraldo Luiz De Mori SJ
Além de narrar a história do povo da aliança, a Bíblia oferece uma série de afirmações relacionadas à compreensão que o povo hebreu tinha do mundo, do ser humano e de Deus. Tais afirmações constituem também uma das fontes do humanismo.Explorarei aqui uma dessas afirmações, presente em Gn 1,26-31 e retomada em alguns textos de Paulo. Segundo o relato de Gênesis: “Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra. Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou. Deus os abençoou e lhes disse: sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre aterra. Deus disse: eu vos dou todas as ervas que dão semente, que estão sobre toda a superfície da terra, e todas as árvores que dão frutos que dão semente:isso será vosso alimento. A todas as feras, a todas as aves do céu, a tudo oque rasteja sobre a terra e que é animado de vida, eu dou como alimento toda a verdura das plantas e assim se fez. Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom. Houve uma tarde e uma manhã: sexto dia”.
Nesse texto o que chama a atenção de imediato é a mudança do “faça-se”, que precede a criação dos dias anteriores, para o “façamos”, que precede à criação do ser humano. Trata-se de uma de deliberação em Deus, que parece implicar-se de modo particular na criação do ser humano. Ele faz emergir uma liberdade capaz de se relacionar com Ele. Logo em seguida aparece o tema da criação à imagem e semelhança, quedá conteúdo a isso. Muitos se perguntam sobre o que significa ser imagem e semelhança. Alguns acreditavam que era uma característica particular presente no “corpo” ou na “alma” do ser humano. Na verdade, nessa afirmação encontra-se o fundamento da capacidade humana de entrar em relação com o Criador, chamada pelos padres da Igreja o “ser capaz de Deus”. O tema da imagem e semelhança divina será central na elaboração da antropologia cristã. É importante notar que logo após esta afirmação aparece uma característica específica do ser imagem e semelhança de Deus: o domínio sobre todas as obras da criação, a afirmação de que o ser imagem e semelhança se dá na diferença (homem e mulher ele os criou), e a bênção, que diz respeito à fecundidade, ao povoamento e ao domínio da terra e de tudo o que nela existe. Não se pode esquecer que esta obra é concluída com: “Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom”,afirmação essencial na visão bíblica do ser humano.
Paulo é o autor do Novo Testamento que mais aprofundou o tema da imagem para falar do ser humano. Para ele, a verdadeira imagem de Deus é o Cristo. Em 1Cor 15,49 ele diz: “e como temos trazido a imagem do Adão terrestre, assim revestiremos a imagem do celeste”. Em Rm 8,29 ele afirma: “porque os que de antemão ele conheceu, esses também predestinou a serem conformes à imagem do seu Filho, afim de ser ele o primogênito entre muitos irmãos”. Em 2Cor 3,18, recordando Moisés de rosto coberto diante de Deus no Sinai, ele observa que seremos “transfigurados nessa imagem que é Cristo”. Em Col 1,15-16 ele diz que o Cristo “é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda criatura, porque nele foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis”. Ser imagem e semelhança de Deus é, portanto, assemelhar-se ao Cristo, reproduzir na própria vida o modo de ser e de agir do humano verdadeiro que foi Jesus.
É importante notar que o tema da imagem e semelhança estará associado a outras afirmações importantes na compreensão humanista que se elaborou no mundo ocidental em diálogo e fecundação mútua com outras fontes do humanismo, como agrega e a latina. Ser capaz de Deus significa ser criado como ser de transcendência, ou seja, chamado a uma relação de amizade, que na Bíblia se traduz na categoria da aliança. Esta relação se dá na liberdade, que é a capacidade de iniciativa e de decisão por si mesmo. Isso faz com que os acontecimentos históricos não sejam resultado de fatalidade ou do destino, mas são responsabilidade humana. O humano livre por excelência foi Jesus de Nazaré,e ele mostrou que a relação de aliança com Deus tem como melhor tradução a experiência de filiação. Ser imagem e semelhança significa então, para quem nele crê, ser filho no Filho.