Geraldo Luiz De Mori SJR
Além da afirmação de que o ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus, que está na origem da defesa de sua dignidade inalienável, presente no humanismo bíblico-cristão e retomada na visão antropológica moderna, que deu origem à Declaração dos Direitos Humanos, a Bíblia oferece outros temas antropológicos importantes na formulação do humanismo. Exploraremos hoje algumas expressões bíblicas que dizem quem é o ser humano e que deram origem à ideia de sua somático-psíquico-espiritual.
Muitas leituras religiosas e filosóficas buscaram entender o fato de o ser humano ser,por um lado, constituído de matéria, que forma o seu corpo, que é marcado pela finitude, expressa no envelhecimento, na dor, no sofrimento e na morte, e, por outro lado, por uma dimensão espiritual, que o faz ultrapassar e transcender a finitude, abrindo-se para o que muitas culturas chamam de divino, que seria próprio de sua alma. Algumas culturas, sobretudo no oriente, estabeleceram um dualismo entre essas duas dimensões, que se expressou na oposição entre corpo,visto muitas vezes negativamente, e alma, considerada como a dimensão mais nobre e verdadeira do ser humano. No Ocidente foi, sobretudo, certas leituras do platonismo que veicularam esse dualismo. O mundo bíblico não tem este tipo de percepção sobre o ser humano. Em geral, na língua bíblica, os termos para falar do ser humano buscam dizer sua totalidade, sempre posta em relação com o Deus criador.
Dentre esses termos, quatro se destacam. O primeiro, “basar”, foi traduzido para o grego por “sarx”, que deu origem, no português, ao termo “carne”. Na Bíblia nunca tem sentido negativo, significando, entre outras coisas, o ser humano em sua manifestação, o fato de o ser humano pertencer à terra e à vida animal, sua dependência de Deus, sua fragilidade e vulnerabilidade. Paulo o opõe a“espírito”, no sentido de oposição a Deus quando movido pelo pecado. Na tradução desse termo ao grego utilizou-se, para alguns aspectos, o termo “soma”,que deu origem ao termo “corpo”, em nossa língua. Paulo é quem mais valoriza esse termo, acrescentando aos significados de “carne” alguns próprios ao term o corpo: unidade, dignidade, relação com o Cristo, vocação à glória. Ele fala da ressurreição do “corpo” e não da “carne”, além de elaborar a teologia da Igreja como “corpo de Cristo”.
O segundo termo importante para falar quem é o humano na Bíblia é “nefesh”, queno grego foi traduzido por “psyché” e deu origem, em português, a “alma”.Indica, originalmente o órgão de respiração, a garganta, sede das necessidades vitais. Aos poucos passa a designar o sentido de desejar, anelar, em geral algo fora de si, identificando-se então com o ânimo. Em seguida começa a designar ainda a pessoa ou o pronome pessoal. O ser humano é visto como o singular ser vivo, que não recebeu nem pode manter por si a própria vida, mas, que por seu desejo profundo de vida, não tem recurso em si mesmo.
O terceiro termo para dizer o humano na Bíblia é “leb”, traduzido para “kardía”,em grego, e “coração”, em português. É o interior do ser humano. Várias atitudes lhe são associadas, como o sentimento de angústia, o caráter, o temperamento, a alegria, a dor e a coragem. Também expressa o desejo, a aspiração, como “alma”, além de identificar-se com a razão enquanto capacidade de conhecimento, consciência, recordação, reflexão, juízo, orientação. Está unido à vontade e à decisão e pode expressar o pronome pessoal.
Finalmente,o quarto termo, “ruah”, traduzido por “pneuma”, em grego, e “espírito”, em português, indica o ar ou o vento, podendo ser referido a Deus, aos seres humanos e aos animais. Trata-se de uma força que produz mudanças e é sempre instrumento de Deus. Referido ao ser humano ela indica, como “nefesh”, a respiração.É Deus quem dá a respiração ao ser humano como força de vida, e esta força pode retornar a Deus. Quando a “ruah” encontra o ser humano, torna-o forte e confere-lhe capacidades extraordinárias. É Deus quem dá o “espírito” e isso se traduz em poder, dons proféticos. Pelo efeito que produz no ser humano, o“espírito” é visto como dinamismo, sabedoria, força de vontade.
Como se pode ver, cada termo busca traduzir o ser humano em sua totalidade, sempre em relação com seu criador. Não existe, portanto, uma percepção de que é o elemento espiritual o mais importante, ou que o material não tem valor. Pelo contrário, toda a bíblia valoriza profundamente tudo o que é da ordem da criação, como a matéria e o corpo. No cristianismo, o próprio Deus se faz carne, como diz São João no Prólogo de seu Evangelho. Além do mais, a carne é prometida a uma glória impressionante, pois Jesus ressuscita, o que significa que sua carne é glorificada. Mais ainda, como o ser humano é criado à sua imagem e semelhança, então também o ser humano é prometido à ressurreição.
O cristianismo, em seu encontro com a cultura grega e o dualismo platônico,aprofundou, ao longo dos séculos, o significado da unidade psíquico-somático-espiritual do ser humano. Uma das grandes sínteses desse aprofundamento se deu na Idade Média, com Santo Tomás de Aquino, que, em diálogo com o pensamento de Aristóteles, dirá que alma e corpo não existem separados, o humano verdadeiro é o da unidade psíquico-somática, cuja plena realização se dá em sua abertura para Aquele que o criou à sua imagem e semelhança.Essas afirmações, serão fundamentais na elaboração do humanismo cristão, pois salvaguarda a dignidade do ser humano inteiro, ou seja, como corpo, alma e espírito.