Música: Kawil (gaivota, em língua mapuche). © 2016, Cristóbal Fones, SJ
Texto: Marina Colasanti. Eu sei, mas não devia (trechos)
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos
e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não
olhar para fora.
E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo se acostuma acender mais cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã
sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
(…)
[A gente] Se acostuma a não ouvir o passarinho,
a não ter galo de madrugada,
a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se
afastando uma dor aqui,
um ressentimento ali, uma revolta acolá.
(…)
A gente se acostuma para não se ralar na
aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos,
para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta,
de tanto acostumar, se perde de si mesma.
Meditação:
O Passo a pensar de hoje nos propõe uma pergunta: “Por que nos acostumamos a uma vida rotineira?”. Partiremos de um trecho do poema “Eu sei, mas não devia”, da poeta e jornalista Marina Colasanti. Escutemos seu poema:
A escritora descreve, com traços dramaticamente reais, a rotina de alguém que
vive em qualquer uma de nossas grandes cidades. Que pontos desta descrição me
fazem pensar em minha vida? Além desses pontos, que outras repetições e
automatismos eu posso identificar no meu dia-a-dia?
Nesses tempos em que fomos obrigados a desacelerar, muitos de nós tiveram que mudar sua rotina totalmente. De fato, é sempre possível viver de outras maneiras! Marina Colasanti nos alerta que a vida rotineira nos leva a alguns distanciamentos – da natureza, de outras pessoas, de nós mesmos. Que presenças se tornaram mais próximas, mais claramente notadas, mais apreciadas, nesses dias de confinamento?
Escutemos, uma segunda vez, o poema de Marina Colasanti.
A poeta sugere uma resposta à nossa pergunta inicial: “Por que nos acostumamos
a uma vida rotineira?”. Segundo ela, isso acontece porque queremos nos poupar
do sofrimento. Mas, com isso, acabamos perdendo as maiores belezas da aventura
da vida. Observo esta reação em mim e nas pessoas que me rodeiam? Concordo com
a provocação feita pela escritora?
Vamos chegando ao fim do Passo a pensar de hoje. O que aprendi neste breve
tempo de reflexão? O que gostaria de aprofundar e partilhar com outras pessoas?
Que você viva, hoje, seu dia de modo único.
Texto completo do poema:
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos
e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não
olhar para fora.
E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo se acostuma acender mais cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã
sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler
sobre a guerra.
E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos.
E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz,
aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e
ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
A lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a ganhar menos do que precisa.
E a fazer filas para pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para
ter com que pagar nas filas que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e a ver
cartazes.
A abrir as revistas e a ver anúncios.
A ligar a televisão e a ver comerciais.
A ir ao cinema e engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição.
As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de
cigarro.
A luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias da água potável.
A contaminação da água do mar.
A lenta morte dos rios.
Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter
galo de madrugada,
a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se
afastando uma dor aqui,
um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio a gente senta na primeira
fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.
Se o trabalho está duro, a gente se consola
pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo
e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na
aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se
da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta,
de tanto acostumar, se perde de si mesma.