O escritor grego Nikos Kazantzakis, em seu romance O Cristo recrucificado, narra a saga de um povo que, após ter a cidade invadida e dizimada pelos turcos, busca uma nova terra para se instalar, de modo a permanecer no mundo e frutificar. Rejeitada por uma comunidade próspera, também grega e cristã, só lhe resta o terreno pedregoso das montanhas, onde a vida, em pleno tempo pascal, insiste em renascer. O líder dos refugiados é um sacerdote ortodoxo, que, com sabedoria, dirige a eles uma parábola naquele crítico momento de reconstrução.
Era uma vez dois caçadores de pássaros que foram montar armadilhas numa montanha. Armaram-nas e, voltando no dia seguinte, que viram? Estavam cheias de pombos selvagens. Os pobres animais jogavam-se contra as redes num esforço desesperado para escapar, mas as malhas eram muito cerradas (…). “Estes animais danados estão pele e osso”, disse um dos caçadores. “Como é que vamos vendê-los no mercado?” “Nós os alimentaremos bem durante alguns dias para engordá-los”, disse outro. Deram-lhes grão em abundância, trouxeram-lhes água. Os pombos começaram a comer e a beber com avidez. Um apenas se recusou a tocar no grão. (…) Engordavam à vista d’olhos. Só o refratário emagrecia (…). Vieram enfim os caçadores buscá-los para os levar ao mercado. O pombo que recusara a comida tinha emagrecido tanto que num golpe de asa voou, livre, no ar…
Na nossa aldeia muito rica, começamos a engordar, a comer muito e a sobrecarregar de carne a nossa alma. (…) Dizíamos: “Tudo vai bem, a justiça reina sobre o mundo, ninguém tem frio (…) …” Então Deus teve pena de nós. (…) Fomos vítimas da injustiça e vimos que o mundo está cheio de injustiça. Tivemos fome, tivemos frio (…). E vimos outros homens que comem por quatro, que não saem de perto da lareira e que olham para seus semelhantes nus e famintos e se riem deles… A adversidade nos abriu os olhos (…). A fome abriu-nos as asas, escapamos da rede da injustiça e da vida fácil! Estamos agora em condições de começar vida nova, mais digna. Demos graças a Deus!
Para cumprir sua função didática, a parábola lida com imagens. O pássaro é, provavelmente, o maior símbolo da liberdade. Não somos capazes de voar por nós mesmos, como ele. No entanto, podemos alçar outros voos, por livres gestos, palavras, criações, descobertas, encontros. Infelizmente, as redes tecidas por nós próprios prendem-nos, muitas vezes, à terra. Esquecidos da nossa vocação para a liberdade, seguimos irrefletidamente um projeto alheio, privilegiamos, em lugar das asas, o imediato que logo nos sobrecarrega. Ouçamos novamente a passagem, buscando e saboreando novos sentidos na parábola de Kazantzakis.
Era uma vez dois caçadores de pássaros que foram montar armadilhas numa montanha. Armaram-nas e, voltando no dia seguinte, que viram? Estavam cheias de pombos selvagens. Os pobres animais jogavam-se contra as redes num esforço desesperado para escapar, mas as malhas eram muito cerradas (…). “Estes animais danados estão pele e osso”, disse um dos caçadores. “Como é que vamos vendê-los no mercado?” “Nós os alimentaremos bem durante alguns dias para engordá-los”, disse outro. Deram-lhes grão em abundância, trouxeram-lhes água. Os pombos começaram a comer e a beber com avidez. Um apenas se recusou a tocar no grão. (…) Engordavam à vista d’olhos. Só o refratário emagrecia (…). Vieram enfim os caçadores buscá-los para os levar ao mercado. O pombo que recusara a comida tinha emagrecido tanto que num golpe de asa voou, livre, no ar…
Na nossa aldeia muito rica, começamos a engordar, a comer muito e a sobrecarregar de carne a nossa alma. (…) Dizíamos: “Tudo vai bem, a justiça reina sobre o mundo, ninguém tem frio (…) …” Então Deus teve pena de nós. (…) Fomos vítimas da injustiça e vimos que o mundo está cheio de injustiça. Tivemos fome, tivemos frio (…). E vimos outros homens que comem por quatro, que não saem de perto da lareira e que olham para seus semelhantes nus e famintos e se riem deles… A adversidade nos abriu os olhos (…). A fome abriu-nos as asas, escapamos da rede da injustiça e da vida fácil! Estamos agora em condições de começar vida nova, mais digna. Demos graças a Deus!
Na parábola, um pombo reconhece, por si mesmo, a urgência de libertar-se. Na explicação, contudo, não é a livre decisão individual de privar-se do alimento, mas a adversidade, que permite aos prisioneiros humanos da injustiça recomeçar. Também nossas asas e nossos olhos podem ser abertos pelas privações e sofrimentos que hoje experimentamos? A consciência da injustiça social exposta pela presente crise, ao redor do mundo, proporcionará um recomeço mais digno da vida? O que fica para cada um de nós deste texto, publicado em 1948, mas tão atual nos seus temas? Que ponto da parábola posso compartilhar com aqueles que me acompanham nesta travessia?
Citação extraída de: O Cristo Recrucificado, de Nikos Kazantzakis. Tradução: Guilhermina Sette. Rio de Janeiro: Abril, 1971.
Produção: Clóvis Salgado Gontijo
Locução: Clóvis Salgado Gontijo e Carolina Ferraz
Música: Schumann – Cuarteto para piano (Op 47) Andante cantábile Martha Argerich Friends