A vida se faz nas marcas

Vivemos numa época que não quer ser marcada. A maioria de nós tenta escapar das rugas, estas cicatrizes do rosto, de todas as formas – algumas delas bem violentas. Os sinais da idade, da vida vivida, são interpretados como algo alienígena, estranho a nós. Estão ali, mas não deveriam estar. É quase uma traição. Urge então apagá-las. (…)

É tamanho o nosso medo da velhice e da morte, que as marcas da vida vivida são decodificadas como feias, quase repugnantes. Tanto que estamos diante de uma novidade – as primeiras gerações de seres humanos envelhecendo e morrendo com os sinais não da idade, mas das cirurgias plásticas. Sim, porque estas também são cicatrizes. Não há jeito de morrer sem marcas porque não há como viver sem ser marcado pela vida. Mesmo os bebês, que por alguma razão morrem ao nascer, já trazem no corpo a marca fundadora – o corte do cordão umbilical que lhes arrancou de dentro da mãe. O umbigo é nossa primeira cicatriz, aquela que nos unifica. (…)

É verdade que, compreendendo o trauma como algo que nos marca, que nos mata simbolicamente para que possamos renascer de outro jeito, nossa vida é cheia deles. O que questiono aqui é a crença de que não deveria ser assim, a ilusão de que é possível – e o pior, que é desejável – ter uma vida sem marcas no corpo e na alma. (…)

É claro que alguns acontecimentos são devastadores – e lutamos para que não voltem a se repetir com ninguém. Mas, mesmo nestes casos, me parece que a vida só é possível não apagando o que é inapagável, mas fazendo algo novo com esta marca. Transformando-a em algo que possa viver. (…)

Como poderia dizer a poeta Adélia Prado, “uso todos os meus cacos para fazer um vitral”. Cada vida humana é um vitral feito com as marcas de todas as nossas mortes. Sem os cacos, nada há.

Meditação:

Que tal refletir, hoje, sobre o modo como integramos – ou não – as feridas e cicatrizes que a vida vai deixando em nós? Para isso, teremos a ajuda do texto “A vida se faz nas marcas”, da jornalista, escritora e documentarista Eliane Brum. Escutemos sua reflexão:

Eliane Brum nos chama a atenção para uma característica de nosso tempo: muitos de nós têm dificuldade de aceitar as consequências do tempo, das relações, das dores, das rupturas que, com intensidades variadas, vão deixando marcas visíveis e invisíveis em nós. Quanto a mim, como lido com essas marcas? Reconheço-me nelas ou insisto em ignorá-las?

Segundo a escritora, o que nos faz fugir das marcas da vida é o medo de envelhecer e morrer. Mas, com isso, vamos apagando de nosso corpo e de nossa consciência os traços que fazem de nós pessoas vivas, singulares, distintas umas das outras. Identifico em mim esse medo? Sou capaz de abraçar minha vida como ela se apresenta a cada dia?

Escutemos, uma segunda vez, a reflexão de Eliane Brum.

Não podemos evitar que a vida nos deixe marcas no corpo e na alma. Mas podemos decidir o que fazemos com elas, como na bela metáfora poética dos cacos de um vitral. Em que tenho transformado minhas marcas, minhas experiências humanas mais dramáticas? Acredito ser possível fazer algo novo, algo com sentido, a partir de meus próprios cacos?

O Passo a pensar de hoje vai chegando ao fim. Que elementos deste texto merecem ser aprofundados e compartilhados com outras pessoas?

Que você acolha, hoje, sua vida com todas as suas marcas.


Locução: o jesuíta Paulo Veríssimo de Araújo Filho e a escritora Clarice Freire

Música: Charkush. © 2016, Cristóbal Fones, SJ