“Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase “se eu fosse eu”, que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. Diria melhor, sentir. E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.
Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao futuro. “Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.”
Texto: Se eu fosse eu, Clarice Lispector. Crônica publicada no livro “A descoberta do mundo”.
Meditação:
O que aconteceria se, enfim, fôssemos, plenamente, quem realmente somos? O que nos impede de assumir inteiramente nossa vida única e irrepetível? O Passo a Pensar de hoje nos traz essas e outras questões, a partir da crônica “Se eu fosse eu”, da jornalista e escritora Clarice Lispector. Escutemos o que ela nos diz:
A relação poética que Clarice Lispector estabelece com a realidade quotidiana surpreende-nos com o deslocamento de uma busca superficial – uma folha de papel – a uma busca mais profunda – nosso próprio eu. Ela nos propõe uma pergunta fundamental: “se eu fosse eu”? Deixemos esta provocação abalar nossa certeza ilusória de sermos, de fato, quem somos…
A escritora fala de um sentimento de desconforto diante da súbita tomada de consciência de certa tendência que temos a nos acostumarmos com mentiras ou, ao menos, com verdades demasiadamente parciais sobre nós. Sem este constrangimento, dificilmente poderíamos nos dispor a uma mudança, a esta aventura em busca de sermos quem somos. Você já sentiu este desconforto salutar? Como tem respondido a esta inquietação interior?
Clarice não nos engana: a autenticidade comporta uma comunhão com a dor da existência, nossa e do mundo. Mas ela vislumbra também um júbilo profundo, para além de nossa capacidade de imaginação. Isto significa ser, enfim, inteiro, inteira, sem querer eliminar de nossa vida as contradições de nossa condição humana. Você se sente desejoso, desejosa de abraçar uma existência autêntica, com suas consequências?
Vamos chegando ao fim de mais um Passo a Pensar. Aprendi algo novo hoje? O que gostaria de aprofundar um pouco mais?
A Faculdade Jesuíta deseja que, a cada dia, você ouse ser quem você realmente é!
Texto: Se eu fosse eu, de Clarice Lispector. Crônica publicada no livro “A descoberta do mundo”.
Música: Morning Has Broken – Tradicional Gaelic Melody © CD Sanctus – Paulinas.
Locução: Lucimara Trevizan e Francys Silvestrini Adão SJ