Há quanto tempo você não escreve uma carta? Como o exercício de escrever pode nos ajudar a dizer as coisas escondidas em nosso coração? Para nos ajudar a refletir sobre isso, o Passo a Pensar de hoje nos propõe o texto “Carta para você”, da escritora e poeta Clarice Freire. Escutemos:
“Divido com você o meu lado mais banal. O ordinário dos meus dias. O que não tem valor aparente, eu parto em dois, uma parte é sua. Assim como te dou as minhas partidas. Divido os cacos da minha conversa batida também. Aquela que ninguém aguenta mais ouvir. Você sempre varreu tudo tão cuidadosamente, meio mudo eloquente, com uma serenidade invejável. Tenho tanta inveja de você e desse seu jeito simples de juntar pedaços como se isso fosse importante… Eu nunca me dou toda essa importância; fico sempre mirando falsos inteiros enquanto você me espia. Que lindo seu olhar de espião, me desconserta inteira. Simplesmente porque na verdade você estava me consertando e eu nem percebi. Foi a sua sutileza, eu sei. Hoje eu sei. Não são partes que te dou. Muito menos nadas. Mas de quinquilharia em quinquilharia, você me montou de novo, como um quebra-cabeças finalizado. E teria outra maneira de adentrar nesta cabeça dura se não quebrando em cacos? Depois colando e criando uma paisagem nova. Mais verde, mais bonita mesmo. Porque nela você está lá. Não te dei pedaços. Nem minhas partidas. Eu quis partir com você por inteiro. Com carinho, eu.”
Clarice Freire. Pó de Lua nas noites em claro (Ed. Intrínseca), p. 131.
Meditação:
Clarice Freire não escreve um tratado sobre a importância de escrever cartas, mas nos dá um exemplo. Um exemplo cheio de poesia e que fala da força dos afetos: serenidade, inveja, desconcerto/“desconserto”, cabeça dura. Qual foi a última vez que você escreveu uma carta? Em que situações você ousa dizer ou escrever sobre seus próprios sentimentos?
A escritora fala de partes, partidas, cacos, pedaços… Ela reconhece que tem oferecido a este “você” muitas partes de si e tem mostrado também suas rupturas interiores. Como você tem se mostrado e se dado a outros, ainda que aos poucos? A quem você expõe seus cacos e divisões internas?
Clarice desvela em sua carta uma dupla experiência. Por um lado, o olhar do outro ajuda a limpar falsas imagens, falsas inteirezas que, às vezes, insistimos em guardar. Por outro lado, este “você” bem escolhido devolve a ela um mundo mais amplo, mais inteiro, mais bonito, onde cabe mais gente, onde cabe o carinho. Você já fez estas duas experiências? Já agradeceu por elas?
Estamos chegando ao fim de mais um Passo a Pensar. O que mais lhe inspirou na reflexão de hoje?
A Faculdade Jesuíta deseja que todos ousemos escrever e reescrever nossa história ao lado de pessoas queridas!
Locução: Lucimara Trevizan e Francys Silvestrini Adão SJ
Música: Wefko (vertente, em língua mapuche). © 2016, Cristóbal Fones, SJ