Uma sadia loucura

Clarice Lispector, em sua crônica “Mineirinho”, (…) construída em torno do episódio real do assassinato de um bandido pela polícia, o Mineirinho, desenvolve duas figuras que muito nos ajudam a pensar, ainda hoje, sobre como temos nos organizado socialmente. São elas o sonso e o doido. O sonso é aquele que descansa tranquilamente em sua casa cercada de proteção e conta com a retaguarda de uma justiça que garante seus direitos, principalmente o direto à propriedade privada. Justiça que “vela o sono” dos “sonsos essenciais”, que, afinal, somos todos nós. (…) Nós que nos separamos radicalmente de Mineirinho, e deixamos a ele, somente a ele, a violência que também é nossa. (…) O doido é o que grita por uma justiça que seja outra, que seja, ela própria, “um pouco mais doida”. Uma justiça que nos permitisse ver a nós próprios em Mineirinho. (…) A justiça doida não me separa de Mineirinho na medida em que vê em mim e nele o mesmo grão de vida. O grão que nele foi pisado e se fez medo e violência – e que assim poderia ter sido também em mim. (…) A possibilidade, cada vez mais longínqua, de reconstrução do mundo de valores em que vivemos, parece nos acenar neste escrito de décadas atrás, como a nos lembrar da existência perene do terreno por baixo das construções que edificamos. Como a nos forçar a retomar a loucura capaz de nos pôr a sonhar e projetar um outro mundo, aquele em que radicalmente se cumpra o mandamento: não matarás.

Marília Murta de Almeida. “O sonso e o doido”. In: https://faculdadejesuita.edu.br/o-sonso-e-o-doido/

Meditação:

Como nós lidamos com a violência cometida contra pessoas consideradas criminosas? Até onde vai nosso grau de empatia? Para nos ajudar a refletir sobre isso, o Passo a Pensar de hoje traz um trecho do texto “O sonso e o doido”, da pesquisadora e professora de filosofia Marília Murta de Almeida. Escutemos o que ela nos diz:

Marília Murta, a partir de uma crônica de Clarice Lispector, expõe dois modos de lidar com a violência urbana e com a violência humana. O primeiro modo é o do sonso, que se utiliza do aparato estatal para a própria proteção, em detrimento dos outros, e tem dificuldade de reconhecer a violência que há em si mesmo. O que esta descrição provoca em você? Já se sentiu tentado/a a ter esta atitude existencial?

Por outro lado, a professora apresenta o segundo modo de lidar com esta absurda violência que nos rodeia. É o modo do doido, que, supreendentemente tocado pela empatia humana, deseja uma justiça para todos, uma justiça que lute contra as situações de vida pisada e esmagada, situações que geram medo e violência. Por que a escritora chama esta atitude de doida? O que esta descrição quer provocar no leitor?

Marília Murta, inspirada por Clarice, fala, afinal, da reconstrução de valores, da alimentação de novos sonhos e projetos, da busca de um outro mundo, mais bonito para todos, que não se alegre com a morte de ninguém. E isso só é possível, com uma santa e sadia loucura. Como anda esta sua loucura? Você ainda sonha com um mundo novo, melhor para todos?

O Passo a Pensar de hoje vai chegando ao fim. Que pontos você gostaria de revisitar e aprofundar?

A Faculdade Jesuíta deseja que sejamos capazes de sonhar, com sadia loucura, com um outro mundo possível

Música: It Is Well With My Soul – Horatio G. Spafford/Philip P. Blis © CD Sanctus – Paulinas.

Produção e Locução: Lucimara Trevizan e Francys Silvestrini Adão SJ